“As
cidades tem alma, jeito próprio de ser e parecer”. (A. Tito Filho)
Olhando de forma descritiva para a
frase, que soa mais como melodia, do historiador e jornalista Arimathéa Tito
Filho vislumbro Oeiras, com suas ruas tortas, becos que já presenciaram procissões
e cantorias. Praças, sobrados e igrejas que ao longo do tempo foram tornando
viva a existência de um povo que através da expressão cultural, do folclore, da
fé e religiosidade, foram dando vida à cidade. Uma alma brejeira, telúrica e
simplesmente oeirense. Viver aqui é sentir todos os dias o coração pulsante, um
saudosismo impregnado, desde então, pois, verdadeiramente Oeiras tem uma alma,
composta de fragmentos da intelectualidade, do imaginário coletivo, da
religiosidade e da simplicidade do sertanejo que vai de passo em passo na
procissão do Bom Jesus.
Ao ser convidado para apresentar o
livro: ‘Arquivo Silencioso’, do historiador e amigo Francisco Rêgo, para mim é
motivo de honra. E ao receber tamanho convite logo me veio à mente a frase dita
anteriormente: “as cidades tem alma...” pois em algumas conversas informais o
autor sempre me contava algumas estórias e histórias que compõem as narrativas
de seu livro. Aguçando meu imaginário e provocando minha curiosidade de leitor
e estudioso sobre Oeiras e sua história.
Ao iniciar a apreciação de Arquivo
Silencioso, fui tomado por um desejo de degustar com grande voracidade as
páginas deste arquivo, que hoje deixa de ser silencioso e toma voz, pois em
cada crônica o real e o imaginário, o mítico e o popular tomam forma,
expressando uma narrativa de fatos, estórias e histórias. Algumas ouviu de sua genitora
dona Lourdes Portela, outras de alguns velhos oeirenses, de gente espirituosa e
criativa, as demais, através de sua vivência como ativista cultural na cidade
de Oeiras, quando jovem, bem como pela experiência, estudo e observação do
cotidiano.
A capa e a contracapa do livro são
ilustrados com fotos da Oeiras de ontem e de hoje, de personagens folclóricos e
inesquecíveis, de cenas, monumentos e ruas que foram e continuam sendo cenário
de tantas histórias.
O texto de apresentação escrito pelo
historiador oeirense Dr. Dagoberto Carvalho Jr., descreve as múltiplas facetas
do autor, quando o caracteriza e intitula de multiartista, pois escreve, canta,
rege, toca e ainda de forma criativa prepara ao longo dos anos um presépio em
sua casa na Rua do Fogo, no período do Natal.
O livro é composto de quarenta e duas
crônicas, que traduzem a tradição oral, onde a ficção e a realidade se misturam
formando um mosaico de narrativas que hoje fazem parte desse arquivo, não mais
perdidos no tempo.
Podemos perceber na crônica: “A
Feira”, como espaço de memória e transmissão de saberes, o cotidiano de uma
gente que no labor diário, produzia seu sustento e na simplicidade de seus dias
eram felizes, no pouco ou muito que conquistavam. Toda a cidade experimentava
tal sentimento, transformado pela modernidade e pelo progresso.
Na sua fantasia mítica e folclórica,
as crônicas: “A Premedição”, “A Besta-fera”, “A marmota”, “A onça”, “O cavaleiro” e “Imagem
e sombra” são exemplos de sua veia de cronista que como numa teia de relações,
provoca o leitor, usando a ficção dentro de um contexto histórico real,
descrito com minúncia e cuidado. Demonstrando desde a desilusão dos oeirense com
a retirada da capital para Teresina, às superstições que assombravam e que
ditavam regras de conduta para o sertanejo, que como diz Euclides da Cunha:
“... é antes de tudo, um forte”.
As crônicas expostas neste livro
trazem um conteúdo de socialização e moral, demonstrando lições de vida,
exemplos de seres humanos que com resignação e coragem tornaram-se ícones de
uma geração como a devotíssima “Ana Loiola”, que diante dos percalços da vida e
da solidão, foi sinônimo de fortaleza até o fim.
Uma legião de personagens que fizeram
história e que povoaram o imaginário coletivo de toda uma cidade ao longo dos
anos, estão presentes nesta obra, celebrada em crônicas. “Antônio Bocão”, o
ecêntrico que adorava está no centro das provocações; “Bastim de Gersom” o
contador de histórias; “Batata Tabaqueiro”, com sua veia artística e sua
clausura como a de um monge; “Ciço Cego”, e os famosos e glamurosos bailes; “José
Hipólito”, conhecido por todos como Zé de Helena, jardineiro fiel, garçon e devoto de Nossa Senhora
do Carmo. Eurico, na crônica “O Reencontro”, um personagem fértil que com sua
irreverência, marcou nossos dias. Além de “Dorête” com seu deboche e forma de
ser, bem como tantos “loucos e suas loucuras” não passaram despercebidos aos
olhos do autor.
No campo do Sagrado, o escritor
demonstra a sua forte devoção pelo Divino tão celebrado em sua família. Na
crônica “Festa do Divino”, ele descreve a tradição, dando um enfoque para as
mudanças, determinadas pelo tempo. No entanto, a sua devoção se estende à
Catedral, a Nossa Senhora da Vitória, aos sinos da velha matriz e ao Bom Jesus,
este último mais do que devoção, amor, expressado com toda sua oeirensidade na
crônica “Relíquias”. Certa vez ouvi dizê-lo que já havia pensado em deixar
Oeiras e morar definitivamente em Teresina, mas sempre voltava atrás, pois não
tinha coragem de deixar o Bom Jesus.
A música também está presente na vida do autor.
No tempo da mocidade, como jovem idealista compôs com mais quatro amigos, a
banda ‘Os Falcões’, relato presente na crônica “Bandolins e bandoleiras”, que
narra também os conflitos entre duas bandas rivais no final do século XIX e o
dedilhar dos Bandolins de Oeiras, que hoje atua como maestro dessa orquestra,
presente nos eventos religiosos, cívicos e culturais da cidade.
A religiosidade do autor, marcante na
obra, é na realidade proveniente de uma herança familiar, pois descende de um
sacerdote que está presente nos annales da história de nossa terra: “Padre
Freitas”, uma crônica fantástica, logo que recebi o livro comecei a folhear e
deparei-me com provocante texto que mostra a personalidade de um homem de fé,
que contrariando o celibato clerical deixou uma prole de descendentes, que
continuam fazendo história e vivendo Oeiras.
“O Báculo” e “O Cônego” são crônicas
que historicizam a obra, revelando fatos e desnudando a história a partir da
reconstrução da memória, dentro de um foco de pesquisa e estudo, análise e
investigação. Ainda dentro dessa vertente, destacamos “O Tombo dos tombados”,
onde o autor critica o desaparecimento de monumentos e tradições; “O lajedo do
samba” e o “Quilombo”, onde o pano de fundo é a escravidão, presente em Oeiras,
no período colonial, que a exemplo das cidades coloniais do Brasil, encontrou resistência
por partes dos escravos, que lutavam por liberdade e dignidade. A prepotência
dos poderosos descrita de forma folclórica no texto “O manto”, vem reforçar a
ideia de que, somente uma ação feita de forma sincera agrada as divindades.
De forma lúdica, o autor revela seu
saudosismo, representado nas crônicas: “Pirulitos e queimados”, “Roubando
panelas”, “As lavadeiras do mocha”, “Visitando presépios”, os encantos e lendas
da “Rua do Fogo”. Além do mistério que envolve a crônica “O Banho”. Quem viveu
Oeiras nesse tempo áureo, experimentou os queimados, ainda presentes na festa
de Nossa Senhora da Conceição, banhou-se nas águas cristalinas do riacho de
onde tudo começou, e vivenciou durante o mês de dezembro a confecção e
visitação aos presépios que enfeitavam os casarões no centro histórico.
Na crônica que deu nome ao livro:
“Arquivo silencioso”, o autor diz que todo um passado vivo e vivido, está
arquivado e plantado na terra. Mesmo transformado em pó, a história teima em
existir, pois como diz o historiador português Alexandre Herculano, que tive a
honra de visitar seu mausoléu no Mosteiro dos Jerônimos em Lisboa – Portugal é
preciso “guardar a memória, viver a história”.
Toda essa memória, expressada em
narrativas, pelo escritor Francisco Rêgo, traduz o cotidiano, a cidade, homens
e mulheres, personagens reais e folclóricos que não ficaram escondidos nos
beirais que o tempo encarregou de ruir, mas projetaram-se como peças
fundamentais de uma história, que hoje se torna presente na obra que ora
apresento.
Parabéns historiador e escritor Francisco
Rêgo pela obra, pela sensibilidade de artista com que escreveu ‘Arquivo
silencioso’. Hoje você presenteia a literatura oeirense com tão representativo
livro, engrossando as fileiras dos escritores desta terra e fazendo história. Viver,
falar e escrever sobre Oeiras nunca se esgota, pois como nos diz o poeta Elmar
Carvalho: “Oeiras navega na noite de um tempo que não termina”.
Muito obrigado!
*Pedro Dias de Freitas Júnior é professor
de História, Jornalista e Membro efetivo do Instituto Histórico de Oeiras.
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