terça-feira, 27 de agosto de 2013

Apresentação do livro: "Arquivo Silencioso"

                                                        


As cidades tem alma, jeito próprio de ser e parecer”. (A. Tito Filho)

Olhando de forma descritiva para a frase, que soa mais como melodia, do historiador e jornalista Arimathéa Tito Filho vislumbro Oeiras, com suas ruas tortas, becos que já presenciaram procissões e cantorias. Praças, sobrados e igrejas que ao longo do tempo foram tornando viva a existência de um povo que através da expressão cultural, do folclore, da fé e religiosidade, foram dando vida à cidade. Uma alma brejeira, telúrica e simplesmente oeirense. Viver aqui é sentir todos os dias o coração pulsante, um saudosismo impregnado, desde então, pois, verdadeiramente Oeiras tem uma alma, composta de fragmentos da intelectualidade, do imaginário coletivo, da religiosidade e da simplicidade do sertanejo que vai de passo em passo na procissão do Bom Jesus.

Ao ser convidado para apresentar o livro: ‘Arquivo Silencioso’, do historiador e amigo Francisco Rêgo, para mim é motivo de honra. E ao receber tamanho convite logo me veio à mente a frase dita anteriormente: “as cidades tem alma...” pois em algumas conversas informais o autor sempre me contava algumas estórias e histórias que compõem as narrativas de seu livro. Aguçando meu imaginário e provocando minha curiosidade de leitor e estudioso sobre Oeiras e sua história.

Ao iniciar a apreciação de Arquivo Silencioso, fui tomado por um desejo de degustar com grande voracidade as páginas deste arquivo, que hoje deixa de ser silencioso e toma voz, pois em cada crônica o real e o imaginário, o mítico e o popular tomam forma, expressando uma narrativa de fatos, estórias e histórias. Algumas ouviu de sua genitora dona Lourdes Portela, outras de alguns velhos oeirenses, de gente espirituosa e criativa, as demais, através de sua vivência como ativista cultural na cidade de Oeiras, quando jovem, bem como pela experiência, estudo e observação do cotidiano.

A capa e a contracapa do livro são ilustrados com fotos da Oeiras de ontem e de hoje, de personagens folclóricos e inesquecíveis, de cenas, monumentos e ruas que foram e continuam sendo cenário de tantas histórias.

O texto de apresentação escrito pelo historiador oeirense Dr. Dagoberto Carvalho Jr., descreve as múltiplas facetas do autor, quando o caracteriza e intitula de multiartista, pois escreve, canta, rege, toca e ainda de forma criativa prepara ao longo dos anos um presépio em sua casa na Rua do Fogo, no período do Natal.

O livro é composto de quarenta e duas crônicas, que traduzem a tradição oral, onde a ficção e a realidade se misturam formando um mosaico de narrativas que hoje fazem parte desse arquivo, não mais perdidos no tempo.

Podemos perceber na crônica: “A Feira”, como espaço de memória e transmissão de saberes, o cotidiano de uma gente que no labor diário, produzia seu sustento e na simplicidade de seus dias eram felizes, no pouco ou muito que conquistavam. Toda a cidade experimentava tal sentimento, transformado pela modernidade e pelo progresso.

Na sua fantasia mítica e folclórica, as crônicas: “A Premedição”, “A Besta-fera”,  “A marmota”, “A onça”, “O cavaleiro” e “Imagem e sombra” são exemplos de sua veia de cronista que como numa teia de relações, provoca o leitor, usando a ficção dentro de um contexto histórico real, descrito com minúncia e cuidado. Demonstrando desde a desilusão dos oeirense com a retirada da capital para Teresina, às superstições que assombravam e que ditavam regras de conduta para o sertanejo, que como diz Euclides da Cunha: “... é antes de tudo, um forte”.

As crônicas expostas neste livro trazem um conteúdo de socialização e moral, demonstrando lições de vida, exemplos de seres humanos que com resignação e coragem tornaram-se ícones de uma geração como a devotíssima “Ana Loiola”, que diante dos percalços da vida e da solidão, foi sinônimo de fortaleza até o fim.

Uma legião de personagens que fizeram história e que povoaram o imaginário coletivo de toda uma cidade ao longo dos anos, estão presentes nesta obra, celebrada em crônicas. “Antônio Bocão”, o ecêntrico que adorava está no centro das provocações; “Bastim de Gersom” o contador de histórias; “Batata Tabaqueiro”, com sua veia artística e sua clausura como a de um monge; “Ciço Cego”, e os famosos e glamurosos bailes; “José Hipólito”, conhecido por todos como Zé de Helena,  jardineiro fiel, garçon e devoto de Nossa Senhora do Carmo. Eurico, na crônica “O Reencontro”, um personagem fértil que com sua irreverência, marcou nossos dias. Além de “Dorête” com seu deboche e forma de ser, bem como tantos “loucos e suas loucuras” não passaram despercebidos aos olhos do autor.

No campo do Sagrado, o escritor demonstra a sua forte devoção pelo Divino tão celebrado em sua família. Na crônica “Festa do Divino”, ele descreve a tradição, dando um enfoque para as mudanças, determinadas pelo tempo. No entanto, a sua devoção se estende à Catedral, a Nossa Senhora da Vitória, aos sinos da velha matriz e ao Bom Jesus, este último mais do que devoção, amor, expressado com toda sua oeirensidade na crônica “Relíquias”. Certa vez ouvi dizê-lo que já havia pensado em deixar Oeiras e morar definitivamente em Teresina, mas sempre voltava atrás, pois não tinha coragem de deixar o Bom Jesus.

A música também está presente na vida do autor. No tempo da mocidade, como jovem idealista compôs com mais quatro amigos, a banda ‘Os Falcões’, relato presente na crônica “Bandolins e bandoleiras”, que narra também os conflitos entre duas bandas rivais no final do século XIX e o dedilhar dos Bandolins de Oeiras, que hoje atua como maestro dessa orquestra, presente nos eventos religiosos, cívicos e culturais da cidade.

A religiosidade do autor, marcante na obra, é na realidade proveniente de uma herança familiar, pois descende de um sacerdote que está presente nos annales da história de nossa terra: “Padre Freitas”, uma crônica fantástica, logo que recebi o livro comecei a folhear e deparei-me com provocante texto que mostra a personalidade de um homem de fé, que contrariando o celibato clerical deixou uma prole de descendentes, que continuam fazendo história e vivendo Oeiras.

“O Báculo” e “O Cônego” são crônicas que historicizam a obra, revelando fatos e desnudando a história a partir da reconstrução da memória, dentro de um foco de pesquisa e estudo, análise e investigação. Ainda dentro dessa vertente, destacamos “O Tombo dos tombados”, onde o autor critica o desaparecimento de monumentos e tradições; “O lajedo do samba” e o “Quilombo”, onde o pano de fundo é a escravidão, presente em Oeiras, no período colonial, que a exemplo das cidades coloniais do Brasil, encontrou resistência por partes dos escravos, que lutavam por liberdade e dignidade. A prepotência dos poderosos descrita de forma folclórica no texto “O manto”, vem reforçar a ideia de que, somente uma ação feita de forma sincera agrada as divindades.

De forma lúdica, o autor revela seu saudosismo, representado nas crônicas: “Pirulitos e queimados”, “Roubando panelas”, “As lavadeiras do mocha”, “Visitando presépios”, os encantos e lendas da “Rua do Fogo”. Além do mistério que envolve a crônica “O Banho”. Quem viveu Oeiras nesse tempo áureo, experimentou os queimados, ainda presentes na festa de Nossa Senhora da Conceição, banhou-se nas águas cristalinas do riacho de onde tudo começou, e vivenciou durante o mês de dezembro a confecção e visitação aos presépios que enfeitavam os casarões no centro histórico.

Na crônica que deu nome ao livro: “Arquivo silencioso”, o autor diz que todo um passado vivo e vivido, está arquivado e plantado na terra. Mesmo transformado em pó, a história teima em existir, pois como diz o historiador português Alexandre Herculano, que tive a honra de visitar seu mausoléu no Mosteiro dos Jerônimos em Lisboa – Portugal é preciso “guardar a memória, viver a história”.

Toda essa memória, expressada em narrativas, pelo escritor Francisco Rêgo, traduz o cotidiano, a cidade, homens e mulheres, personagens reais e folclóricos que não ficaram escondidos nos beirais que o tempo encarregou de ruir, mas projetaram-se como peças fundamentais de uma história, que hoje se torna presente na obra que ora apresento.

Parabéns historiador e escritor Francisco Rêgo pela obra, pela sensibilidade de artista com que escreveu ‘Arquivo silencioso’. Hoje você presenteia a literatura oeirense com tão representativo livro, engrossando as fileiras dos escritores desta terra e fazendo história. Viver, falar e escrever sobre Oeiras nunca se esgota, pois como nos diz o poeta Elmar Carvalho: “Oeiras navega na noite de um tempo que não termina”.

Muito obrigado!

*Pedro Dias de Freitas Júnior é professor de História, Jornalista e Membro efetivo do Instituto Histórico de Oeiras.

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